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Flanelinha ajuda motorista na Rua Araújo
Bivar, na Pajuçara (Foto: Eduardo Leite) |
Por David Lucena e Marcos Leonardo
Existe uma ruela, no bairro da Pajuçara, à beira-mar de Maceió, que é margeada, em ambos os lados, por lanchonetes, uma pizzaria e uma sorveteria. Por conta disso, o movimento é intenso na Rua Araújo Bivar. Seja para comer um pastel chinês, um prato árabe, uma pizza nordestina, um sorvete de chocolate africano ou apenas para bater-papo, famílias, amigos e casais frequentam os estabelecimentos dali.
Em uma noite morna e ventilada — como costumam ser as noites de verão em Maceió —, na esquina da Araújo Bivar com a Rua Desembargador Almeida Guimarães, uma jovem de aproximadamente 20 anos tenta estacionar seu Ford KA vermelho em uma vaga estreita. Sem muito esforço, ela consegue encaixar o carro no espaço que havia entre outros dois veículos. Ao sair do automóvel, acompanhada por três amigas que aparentam ter a mesma idade, um homem de bermuda, sandália e camiseta se aproxima.
"Vou dar uma olhada, viu, prima?", diz o flanelinha.
A garota acena positivamente.
Alberon da Silva — ou "Primo", como é conhecido, por conta do tratamento dado aos donos de veículos para quem ele presta serviço — recepciona mais alguns clientes e orienta outros que manobram o carro para ir embora até que o grupo de garotas volta. Elas entram no carro, o flanelinha se aproxima e ajuda a motorista a retirar o Ford KA da vaga, que, ainda com os vidros fechados, vai embora.
Desapontado, não só pelo dinheiro, mas sobretudo pela atenção que deixou de receber, Alberon retoma a atividade e corre para auxiliar mais um condutor.
"Infelizmente ainda existe muito preconceito. Muita gente acha que nós somos maloqueiros e humilha a gente. Às vezes, as pessoas, geralmente bem instruídas e de classe alta, até pedem para olharmos o carro, mas quando vão embora é como se a gente nem existisse. Ligam o carro e vão embora, sem dar nenhuma satisfação. Isso é o que me deixa muito triste, primo", desabafa Alberon.
"Tá certo que a via é pública, mas a gente está prestando um serviço. Por exemplo, ontem eu não pude vir. Aí hoje uma mulher veio falar que furtaram o carro dela aqui na esquina. Quer dizer, o nosso serviço é importante. Além disso, é muita responsabilidade. Tem gente que deixa carro de 100 mil reais aqui e a gente toma conta", diz o Primo.
O “Primo”
Alberon da Silva tem 28 anos e, desde que sua irmã casou e saiu de casa, mora só, no complexo residencial Benedito Bentes, no bairro do Tabuleiro do Martins, área periférica de Maceió. Diariamente, há mais de 10 anos, ele enfrenta, nos ônibus sucateados que circulam pela cidade, uma viagem de quase 30km do lugar onde mora para o bairro nobre da Pajuçara, onde, de gorjeta em gorjeta, consegue ganhar, em média, R$ 20,00 por dia trabalhado. Se conseguir trabalhar todos os dias do mês, sem direito a folga, recebe R$ 600,00.
Diante da necessidade de ganhar dinheiro, ele largou a escola antes de completar o ensino fundamental. Sem ter concluído os estudos básicos, o flanelinha não consegue um emprego formal. Já tentou, procurou o Sistema Nacional de Emprego (Sine), mas não obteve sucesso em suas buscas. Para se sustentar, não vê outra alternativa além do exercício profissional que já pratica.
No seu local de trabalho, as ruas, Primo convive com crianças e adolescentes que vivem no submundo do crack. Nos estacionamentos e esquinas escuras da Pajuçara — verdadeiras crackolândias que se escondem por trás dos carros e prédios de luxo —, jovens em estado degradante acendem cachimbos de crack — muitas vezes improvisados em latas metálicas de cerveja ou refrigerante.
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Alberon da Silva, o "Primo", ganha cerca de R$ 20,00 por dia trabalhado (Foto: Eduardo Leite) |
Alberon, no entanto, garante não consumir nenhuma droga. "Dizem que flanelinha é tudo drogado, mas não é assim. É verdade que muitos deles fumam mesmo, mas eu diria que entre dez flanelinhas, só uns três ou quatro não são 'sérios'. Eu, por exemplo, não uso nenhum entorpecente. Não é à toa que trabalho nesse mesmo lugar desde 1999 e todo mundo já me conhece, inclusive os donos dos estabelecimentos".
Abusos
Já no Centro da cidade, em um dia de sol forte e mar agitado na Praia da Avenida, a estudante universitária Isadora Machado saía, por volta do meio-dia, do prédio à beira-mar do Tribunal Regional do Trabalho (TRT), onde estagia, quando, ao entrar em seu carro, um Chevrolet Corsa recém-adquirido, foi abordada por um flanelinha que atua cotidianamente na região. Ele pediu dinheiro, como de costume, mas ela, naquele dia, não tinha.
Dias depois, Isadora saiu mais uma vez do estágio, entrou no carro e dirigiu até sua casa, a poucos quilômetros dali. Já na garagem do prédio onde mora, ao estacionar e descer do veículo, ela teve uma surpresa desagradável. Uma forte arranhão riscava o capô preto do seu Corsa de um lado a outro.
Na manhã seguinte, desconfiada de que o flanelinha para o qual ela havia negado pagamento fosse o autor do risco, ela foi ao lava-jato que fica ao lado do prédio do TRT, em frente o local onde ela tinha estacionado o carro durante o expediente do dia anterior, e perguntou se alguém tinha visto quem arranhara seu veículo.
Os funcionários disseram não ter testemunhado nada, mas informaram que o flanelinha em questão — que atua nas ruas ao redor do Tribunal — já é conhecido pelos funcionários do órgão por arranhar e cuspir nos carros que ele deveria tomar conta.
Inconformada, Isadora critica a atuação dos flanelinhas em Maceió. "Muitas vezes, nós pagamos por medo de sofrer represálias, nos sentimos coagidos a sempre dar dinheiro. Em alguns lugares da cidade, principalmente em eventos como shows e espetáculos teatrais, eles cobram, antecipadamente, valores absurdos como R$ 15,00", diz a estudante.
A busca pela regulamentação
É no meado do século passado que as grandes cidades começam a receber indústrias e se tronar o filão do desenvolvimento brasileiro. Menina de todos os olhos, principalmente daqueles amargurados pela seca e a fome. Ter chegado à zona urbana significa para essas famílias o fim de uma batalha e início de uma guerra.
O entrave entre postos de trabalho e população sempre tem como dividendo a marginalização de muitos, que, com a esperança no olhar amargurado, vive sempre a espera da “grande chance”. Para estes, só sobra a marginalidade e oportunidades em subtrabalhos.
Na rua, a possibilidade de vida nova sem fazer nada de novo: servir aos outros, subordinado as intempéries de cada ego que surge. E no cerne de todo este imbróglio delicado, a condição sine que non para ser cidadão: cidadania.
A criação de regras para os chamados flanelinhas já existe desde que andávamos na linha dura. Foi o general Ernesto Geisel quem regulamentou a profissão no Brasil. Mas a preocupação com essa população é “tanta” que as unidades da federação até esquecem de sua existência.
Parece que aumento da vala entre sociedade e marginalidade levou medo aos primeiros de uma possibilidade de coação dos segundos. Assim os entes públicos decidiram agir e voltar sua atenção para regular as ações desses subtrabalhadores.
Na capital federal, por exemplo, a atividade já é regulamentada. Além da obrigatoriedade de se cadastrar, os flanelinhas passam por um treinamento, para então serem reconhecidos como profissionais legais e receberem o colete do Sindicato de Guardadores e Lavadores de Veículos do Distrito Federal (Sindglav).
Já no nordeste, o exemplo mais recente é o do Maranhão, onde a regulamentação do exercício também foi aprovada. Nesse Estado, cabe à Secretaria de Segurança Pública (SSP) conduzir o projeto de legalização. Em setembro de 2011, a SSP entregou certificados de conclusão de curso, crachás de identificação e uniformes padronizados para 240 guardadores e lavadores autônomos de veículos automotores de São Luís, que foram devidamente registrados junto ao Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).
No curso gratuito ofertado pela Secretaria e tido como pré-requisito para exercício da profissão constam as seguintes disciplinas: primeiros socorros; noções básicas de direito do trabalhador e previdência social; cidadania e serviços sócio-assistenciais; segurança pública: garantia de direitos; e relações interpessoais.
Seguindo a tendência de regulamentação da profissão, uma ação neste sentido parte da Assembleia Legislativa do Estado de Alagoas. O palacete legislativo conta com um estacionamento exclusivo para servidores e deputados. Isto é, na Casa do Povo, o “povo” que quiser estacionar seu carro para acompanhar uma sessão deve deixar o automóvel na rua fazendo uso do serviço do guardador de carro (ao menos que esteja interessado em sustentar os cartéis formados pelos donos de estacionamento do centro da cidade).
Em Alagoas, deputado quer legalizar
Na terceira tentativa de conversar com o deputado João Henrique Caldas – autor do projeto que cria a regulamentação em Alagoas – o que encontramos foi muita correria em seu escritório.
Acabado de denunciar um suposto esquema de pagamento inconstitucional aos gabinetes de deputados, JHC, como é conhecido o jovem e simpático parlamentar, aparentava certa apreensão a sessão plenária que dentro de instantes iria se iniciar – e sua denúncia era a grande pauta do dia.
Enquanto tentávamos perguntá-lo sobre o futuro do seu projeto de regulamentação do profissional flanelinha, ao mundo interessava o destino político da Casa de Tavares Bastos após as denúncias.
“Só um momento”, falou a assessora do deputado ao celular, “é da Folha de São Paulo”, disse ela entregando o aparelho a JHC que educadamente respondia as questões sobre as acusações levantadas por ele.
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Deputado João Henrique Caldas quer regulamentar
a profissão de flanelinha (Foto: Divulgação) |
Enquanto buscávamos emendar uma pergunta e outra dentro da movimentada sala do deputado, ouvíamos dele as considerações relacionadas ao seu projeto de lei para os flanelinhas. Projeto este que já aprovado nas duas votações regimentais do parlamento e espera agora a sansão do governador Teotônio Vilela.
“Eu me baseei no Distrito Federal, Espírito Santo e Santa Catarina”, respondeu Caldas ao ser perguntado de onde surgiu a ideia. Esses Estados, segundo o deputado, tiveram uma redução de 30% a 40% nos seus índices de criminalidade.
Em caso de aprovação do governador, todo o controle fica a cargo do Estado. “Quem tem o controle [dos guardadores] é a Polícia, ou seja, a Defesa Social e apenas o curso [de capacitação para esses trabalhadores] seria feito pela Secretaria de Ação Social. Mas quem tem todo o controle dessas pessoas realmente é a Secretaria de Defesa Social”, garante.
JHC revela na criação da lei uma série de pré-requisitos a serem atendidos pelos flanelinhas contemplados. “Eles devem obedecer a alguns critérios, ou seja, o ‘nada consta’ criminal tem que está em ordem e tem que ter endereço fixo. Precisa saber onde essa pessoa mora”.
“Não poderia!”, não passou perto de ser um grito, mas foi, sem dúvidas, a resposta mais efusiva do deputado. Isto ao ser questionado sobre a possibilidade de ser criado uma taxa para estacionar na rua. “A concessão é do Estado de ser um guardador de carros. Ele tem que saber que vai fazer aquilo de forma voluntária, ou seja, só vai contribui quem achar que deve”, afirmou.
Para evitar a coação, esses profissionais vão receber um colete personalizado com seu cadastro pela Secretaria de Defesa Social. “Hoje, sim, é o modelo errado. Porque essas pessoas agem de modo desordenado. Não se sabe bem quem são essas pessoas e acabam praticando crime de extorsão. Muitas vezes funcionando como ‘aviões do tráfico’” emendou o parlamentar.
OAB vê regulamentação com bons olhos
As informações fornecidas pelo deputado durante essa entrevista são todas respaldadas pela lei. Pelo menos ao que indica nossa conversa com o advogado Marcelo Vieira, presidente da Comissão de Estudos e Relação Trabalhista da OAB Alagoas. De quem fomos atendidos em seu belo escritório localizado no quinto andar de um prédio comercial na Avenida da Paz.
Dr. Vieira ver com bons olhos a criação de uma regulamentação para os flanelinhas. Para ele, não há mais como virar as costas para essas pessoas. O setor jurídico, inclusive, já considera o exercício na prática legal. “No direito trabalhista existe uma primazia pelo trabalho de fato, chegando a superar as formalidades dos documentos”, revela.
Para o advogado, preocupa a questão da violência de coação, pois os “maus flanelinhas” fazem ameaças indiretas ao invés de realmente proteger os carros. Por exemplo, arranhar o carro caso o motorista não pague determinada quantia. O maior benefício seria, então, “a intervenção do poder público para fazer o cadastramento, o treinamento e a identificação desses flanelinhas”, garante.
Legalmente esses profissionais vão ter que respeitar alguns requisitos – como já alertara JHC, devem apresentar certidões negativas e serem maiores de 18 anos. Além disso, é proibida a obrigatoriedade do pagamento, não podendo o guardador estipular um valor.
Outro passo importante que a regulamentação pode trazer, segundo Marcelo Vieira, é a garantia de direitos previdenciários, como a aposentadoria. Mesmo tendo essas garantias, o advogado não nega que o ideal seria outra realidade para essas pessoas. “O bom mesmo era que o Estado desse a segurança necessária para esses pais de família ou cidadão descentes tivessem emprego de uma melhor remuneração e proteção melhor de seus benefícios”, finalizou.
E enquanto nada se resolve...
Enquanto isso, os flanelinhas continuam atuando onde quer que existam vagas e carros para estacionar. O maior problema nesse exercício não regulamentado são as surpresas que o motorista pode ter ao voltar para o veículo. Um arranhão ou a exigência de um preço exorbitante são alguns dos imprevistos desagradáveis. Mas há também os guardadores que reservam surpresas divertidas para seus clientes.
Na Pajuçara, Alberon da Silva, o Primo, faz questão de agradecer em mais de uma língua ao motorista que, satisfeito com seu trabalho, contribui com um valor qualquer.
Em uma tarde de setembro, um homem, acompanhado pela namorada, saía de uma sorveteria na Rua Araújo Bivar. Ele entregou algumas moedas para Alberon, que guardara seu carro, e agradeceu pelo serviço.
"Valeu, amigo".
"Obrigado, primo! Thank you very much! Muchas gracias! Merci beaucoup! Arigato!", agradeceu efusivamente Alberon, para a surpresa e diversão do motorista.